“Ficção Americana” é o filme que jamais ganhará o Oscar

A temporada 2024 do Oscar é, sem dúvidas, uma das mais diversas dos últimos anos. Desde filmes coloridos e divertidos sobre uma boneca perfeita descobrindo a imperfeição até filmes brutais e desconfortáveis sobre a indiferença alemã ao sofrimento judeu.

Poster do filme "Ficção Americana"

No meio desse turbilhão de emoções, roteiro, atuações, orçamentos estratosféricos e polêmicas sobre próteses nasais, surge um cavalo de corrida ao fundo, trotando devagar e silenciosamente. Sem que ninguém percebesse, porém, ele chega páreo a páreo com seus competidores. E este é “Ficção Americana”, do diretor Cord Jefferson.

Assista ao trailer legendado de “Ficção Americana” abaixo:

Monk, um escritor brilhante, tem seu manuscrito negado por diversas editoras. Inspirado na peça “Os Persas” de Ésquilo, Monk trabalha a noção de território e identidade negra. Mas, segundo as editoras, o livro não é “negro o suficiente (!)” Diz seu editor: seu trabalho é brilhante, mas não é funcional para a indústria.

Do outro lado, Monk conhece a escritora Sintara Golden, uma jovem mulher negra e rica que ascendeu rapidamente em sua carreira literária ao escrever sobre estereótipos da população negra norte-americana. Em uma cena emblemática do filme, Monk a escuta lendo um trecho de seu livro, lotado de lugares-comuns em uma linguagem pobre.

“Ficção Americana” e o drama universal

A montagem do filme apresenta um paralelo muito simbólico durante os recortes de cena: O momento em que Sintara palestra a um auditório majoritariamente branco, dizendo ninguém mais quer saber do drama de homens brancos que se divorciam e têm problemas pessoais encerra-se com o início das cenas sobre a vida de Monk, que se desenrolam, justamente, entre tais tipos de problemas: ele vive o divórcio de sua irmã, a doença da mãe e os confusos sentimentos do seu irmão em relação à rejeição familiar que ele nunca percebeu. O filme, portanto, carimba que o drama dito por Sintara como “um drama de homens brancos” faz parte da vida de qualquer ser humano.

“Seu trabalho é brilhante, Monk, mas não é funcional para a indústria.

O filme está disponível na plataforma de streaming Prime Video.

Mas não se engane, leitor: o filme não é condescendente. Nos 117 minutos de história, a direção honesta de Cord Jefferson mostra as incongruências de uma indústria criativa que não pode ser vencida, ao mesmo tempo em que trabalha de forma brilhante com o personagem de Monk, sua crença pessoal e sua hipocrisia. O filme “Ficção Americana” é baseado no livro “Erasure” do autor norte-americano Percival Everett. Com um humor ácido e perspicácia, o autor critica os seus críticos, os seus haters e até mesmo os seus fãs. Ninguém é poupado.

E o oscar vai para… “Ficção Americana”?

O consenso da crítica sobre o filme diz que “Ficção Americana” jamais ganhará o Oscar, mas que vale a pena ser visto. E a pergunta é: por quê? De fato, a temporada está disputadíssima com excelentes filmes. Mas colocar “Ficção Americana” abaixo dos outros filmes é um grande erro. “Ficção Americana” acerta justamente por tocar na ferida mais infeccionada da atualidade: até quando a necessidade de representar públicos e situações estará acima do fazer arte? Talvez, esta mensagem seja demais para o Oscar e alguns estúdios. A Disney, por exemplo, agora trabalha com cotas obrigatórias para personagens em seus filmes, limitando o fazer criativo. O resultado está em fracassos colossais no cinema por parte de todo o tipo de público.

Estereotipar etnias, sexos e culturas também é retirar-lhes a humanidade e a possibilidade de transcenderem. Talvez “Ficção Americana” seja, de fato, o cavalo no qual não se aposte para o final da corrida, mas, sem dúvidas, é o que mais merece cruzar a linha de chegada.

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Ana Paula Bellot

Escritora carioca, amante dos clássicos e do estilo vintage. Autora de contos publicados em blogs, Amazon e dois livros: "O sangue nosso de cada dia – contos" (Independente) e "Cartas de quem vai e de quem fica" (Editora Penalux).

Este post tem um comentário

  1. Cristina Vergnano

    Ainda não vi o filme, mas ele toca em questões muito relevantes. O mercado e certas bandeiras parecem empobrecer o fazer artístico e a prática da reflexão. É sempre bom pensar a respeito e questionar. Parabéns pela crônica, Ana Paula!

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