Literatura para embrulhar o estômago
O objetivo deste texto é analisar, de forma breve, a obra vencedora do Prêmio SESC de Literatura 2023 e explicar por que O NINHO não é o leite Ninho. Mas, antes, uma breve introdução de quem é Bethânia Pires Amaro, esta autora que, repentinamente, desponta no cenário da literatura brasileira com destaque.

A autora e sua obra premiada. Perfil rede social.
Bethânia Pires Amaro, pernambucana de nascimento e baiana de criação, como diz a orelha de seu premiado livro de contos, é uma escritora que, em pouquíssimo tempo, foi capaz de obter repercussão nacional. Como explicar esse sucesso senão pelo talento na arte das palavras?
A autora iniciou sua formação na escrita ficcional na Oficina do Subtexto, conduzida pela escritora Cíntia Moscovich, em 2021. Ainda em 2021, participou do CLIPE – Curso Livre de Preparação do Escritor na Casa das Rosas, em São Paulo.
Avançou 2022 inscrita na Oficina de Criação Literária da PUC-RS, com o Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil, referência nacional no ensino de escrita criativa no Brasil.
E, nesse percurso de aprendizado e experimentação, a autora colecionou prêmios literários importantes. Só para citar alguns: 1º lugar na categoria conto modalidade nacional no 18º Concurso Literário Mário Quintana do Sintrajufe 2022; 1º lugar no 55º Concurso Literário de Contos do FEMUP, e o 1º lugar no Prêmio SESC de Literatura 2023 também no gênero literário que a consagrou.
Por tudo isso, Bethânia encarna um verdadeiro caso peculiar, pois autora iniciante, mas premiada como experiente. Mais uma vez, afirma-se, a explicação para isso só pode ser o talento para a escrita literária.
Agora, vamos à pergunta título desta resenha: por que O NINHO não é o leite NINHO?
Pensar no leite Ninho é sentir o sabor imediato e inconfundível da infância, o sabor de achocolatado em pó, Nescau quase sempre, preparado por nossa mãe logo pela manhã, o sabor adocicado do leite polvilhado sobre bananas picadas.

Sabor de infância.
O NINHO, definitivamente, não é doce. É amargo, é ácido, é cru.
Em quinze contos, a autora faz questão de nos chocar com uma realidade dura de famílias despedaçadas por problemas que costumamos ignorar. Ignoramos, talvez, não por maldade ou por descaso, mas, sim, porque ignorar é uma forma de autopreservação, uma forma de não confrontarmos nossa incapacidade em resolvê-los.
A epígrafe do livro já nos serve como aviso do que vamos encontrar:
“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira”. Liev Tolstói
E o livro está recheado de famílias infelizes.
No conto Leite de cacto, à mãe viciada é imposta a responsabilidade de cuidar de seu bebê enquanto experimenta uma crise na mudança de papéis de mulher para mãe. Veja o trecho que sinaliza a crise vivida pela personagem:
“O choro da menina é para me recordar de que somos cúmplices nas deficiências de minha maternidade, de que minha própria identidade agora lhe pertence – estamos, ambas, confinadas àquela imagem de mãe e filha, dominante o suficiente para apagar quaisquer indícios da mulher que fui, repleta de expectativas que tornam necessário que eu falhe em particular, longe dos olhares curiosos. Eu e minha menina, somente, nos testemunhamos”.
No conto Nero, a protagonista tem certeza de que a bebê encontrada na rua fora deixada para ela, quase como obra do destino, justamente porque a protagonista nunca tomava o caminho até a igreja, mas, naquele dia, decidiu passar por lá. E, ao tentar explicar para sua companheira, Marília, que pegou uma criança para criar, a companheira, aflita com a falta de dinheiro, responde:
“Mas que m**a, você pegou uma criança do nada pra criar?”
A protagonista, já esperando aquele comportamento de sua companheira, disse que “as pessoas faziam coisas piores na vida”.
Ou seja, com apenas estes exemplos, já se pode observar a crueza das histórias e personagens arquitetados pela autora. Até mesmo a linguagem literária se permite flertar com uma linguagem mais rude, chula, mas até a linguagem pornográfica tem a sua razão de ser na obra de Betânia, nem de longe se pode acusá-la de apelativa. Chocante, mas necessária, a conclusão do conto “O fruto da árvore” com o seguinte trecho que o encerra:
“As meninas agora andam por lá com sapatos altos, cafés na mão, carregando computadores – então se sentam e conversam em inglês num pequeno pátio quase aos fundos do terreno, bem ali onde afastei as seringas descartadas ainda grudadas às agulhas, me ajoelhei ao lado das gaiolas e coloquei na boca o c*****o de um homem pela primeira vez”.
Enfim, nada é gratuito, nada é dispensável nesta obra de literatura para embrulhar o estômago. Porque O NINHO, nem de longe, é o leite Ninho.
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Observação: os palavrões foram censurados neste texto para evitar problemas com a censura moderna, os algoritmos.